jueves, 5 de abril de 2012

Im memoriam

Digo adeus aos meus companheiros.
Que digam de sua individualidade
e de seus carinhos interesseiros.
Estes três me trazem saudade.

Saudade do dormir no colo
do miado faminto
Do rolar ao solo
De me sentir pelo instinto

Mas o herdeiro de Caim
a estes três matou

E numa tristeza sem fim
o meu coração deixou.

lunes, 26 de marzo de 2012

Dei gratia

A vida estava difícil. Havia conseguido um trabalho como digitadora, mas a falta de prática e agilidade fizeram com que fosse dispensada depois de um mês. Na agência de emprego, a entrevistadora comentou de um trabalho como digitador temporário. Aceitou. Afinal precisava trabalhar. Quem sabe fazendo aquele bico, conseguiria algo melhor? Não custava nada tentar.
No dia seguinte foi ao local fazer a entrevista. Uma conhecidíssima empresa de planos de saúde. Chegou, avisou a recepcionista, foi sentar-se e esperar. Esperou uma, duas horas. Ninguém a chamou. Uma outra recepcionista foi perguntar se estava esperando por alguém. Disse que aguardava ser chamada para uma entrevista de emprego. A moça, desconsertada foi interfonar para o RH. Mais alguns minutos se passaram e finalmente a conduziram para uma sala no subsolo.
Como não havia ninguém lá dentro preferiu esperar do lado de fora. Na sala enfrente uma voz ansiosa sussurrou:
- Vai lááá! Não tem ninguém na sala e tá cheio de documentos lá!
Um rapaz sai apressado e se assusta ao ver que a moça está aguardando do lado de fora. Volta e comenta que a pessoa não entrou na sala.
Mais alguns minutos e uma mulher simpática e atenciosa vai recebê-la:
- Esqueceram de me avisar que você estava esperando... Achei que já tivesse entrevistado todos os candidatos... Entra. Vamos conversar.
Recebe o currículo, quase vazio de informações. Dá uma olhada geral e pergunta:
- Por que saiu do último emprego?
- Porque queria tempo pra estudar... - Uma meia verdade, pensou.
- E por que está procurando emprego novamente? - Indagou a mulher.
- Porque não adianta ter tempo pra estudar se não se tem dinheiro pra comprar os livros e pagar as fotocópias. - Essa era a resposta mais sincera que já havia dito a alguém.
A mulher a olhou, pensativa e disse:
- Muito bem. No currículo tem seu telefone. Se for necessário entraremos em contato. Obrigada.

Aquilo foi uma entrevista de emprego? Esperar quase três horas para ser entrevistada em três minutos?
No caminho de volta para casa havia uma igreja. Resolveu entrar. Sentou-se. Ajoelhou-se e rezou: Agradeceu a Deus pelas oportunidades que surgiram; pediu que Fizesse o que fosse melhor pra sua vida; que Ele sabia das suas necessidades, do seu desespero, mas que acima de tudo fosse feita a Sua Vontade; que entregava sua vida em Suas Mãos. Sentou-se novamente e ficou algum tempo olhando os santos e o Santíssimo.
Levantou-se e foi pra casa. Ao chegar, sua mãe preocupada lhe pergunta onde esteve. Distraída, comentou que tinha ido a uma entrevista de emprego e depois havia passado na igreja.
- Pois ligou uma mulher muito simpática e disse que é pra você levar sua carteira de trabalho amanhã neste endereço, que você começa a trabalhar amanhã mesmo.
O dia seguinte era seu aniversário. Um presente que Deus lhe deu, pois o emprego temporário se transformou em contrato efetivo.

jueves, 14 de octubre de 2010

Vade in pace

Às vezes não sei se vivi ou não estas lembranças. Após tantos anos, algumas imagens se tornaram esfumaçadas. Mas o final - ou começo - desse dia, eu o tenho muito bem gravado na memória.
Me lembro de minha mãe na janela de nossa cozinha, usando um robe e tomando seu chá noturno. Meu irmão mais velho via televisão na sala. O outro não estava em casa.
De repente ela comentou "seu pai chegou" e foi ao quarto trocar de roupa. Fui até a cozinha e vi nossa caminhonete Chevrolet azul se aproximando vagarosamente... Voltei ao meu quarto para também trocar de roupa e de lá ouvi meu irmão gritar desesperado. Corri até a sala, onde o encontrei caindo, escorregando pela parede, ajoelhando-se e chorando desesperadamente. Seu padrinho estava na janela, olhar triste. Minha mãe, já pronta, foi atender a visita. Em poucos minutos descobri que meu pai estava morto. O mundo ao meu redor se tornou lento. Minha mãe saiu para reconhecer o corpo e meu irmão e eu ficamos sós.
Não me lembro o que fiz - se me sentei, se andei pela casa, se paralisei; só sei que algum tempo depois começaram a chegar pessoas conhecidas e estranhas, todos falando muito baixo. Os móveis da sala foram afastados. Trouxeram os aparatos que se usam em velórios. Por fim, chegou meu pai, inchado, já vestido num terno escuro, muito elegante, como não o via há muito tempo. Junto a ele colocaram as coroas de flores - com seu perfume adocicado de morte que impregnaram a casa - se puder, não quero tê-las em meu velório. Sua fragrância não ajuda, pelo contrário, traumatiza ainda mais.
Havia algumas crianças na casa. Me sentei com elas, conversei, brinquei até. Não sinto remorso por isso, afinal eu não sabia o que estava acontecendo, nunca havia perdido alguém próximo. Nunca me ensinaram que quando alguém morre, você tem que fazer cara triste e chorar.
Observei as mulheres rezando o rosário. Fui à cozinha. Minha mãe fazia café e conversava com as comadres. Estava muito abatida. Parecia que havia envelhecido uns dez anos. Somente ao vê-la assim pude perceber a gravidade do que acontecia. Não tinha mais pai e ela não tinha mais marido. Eu me tornara órfã e ela, viúva - uma denominação tão escura e pesada para uma mulher tão jovem e alegre.
Voltei à sala para ver meu pai. Estava cada vez mais inchado. Parecia o homem gordo das fotografias de anos atrás. Mas nos últimos anos ele estava magro, muito magro e vê-lo daquele jeito me assustou. "Por que está engordando?", pensei. "O que aconteceu com ele?". Toquei suavemente sua mão. Quem sabe ele acordaria e acabaria de vez com toda aquela encenação... aquelas pessoas iriam embora e eu poderia sentar novamente no seu colo pra ele pentear meus cabelos. Mas isso não iria acontecer, eu sabia. Ele nunca foi de brincadeiras, não quando se referia ao sentimento dos outros.
Fiquei olhando o corpo e pensei que ele já não estava mais lá. Aquele era seu corpo, mas ele não estava lá. Havia alguma coisa estranha. Como era possível haver um corpo, mas não haver a pessoa?
O cheiro dos crisântemos continuava, mas outro odor começava a surgir, de algo podre. Percebi que a pele de seus pulsos estava descolada e isso me deu ânsia. Me afastei dele e não voltei mais. Não queria mais ficar perto daquele homem que, apesar de ter a aparência de meu pai, não era o meu pai.
Voltei à cozinha, minha mãe me sugeriu dormir um pouco. Fui ao quarto, deitei, mas o barulho das vozes não me deixou dormir, nem queria isso. Fui ao quintal. Meu segundo irmão estava lá, caminhando entre as árvores. Também ele não queria estar junto daquela gente toda. Resolvi, então, ir para a calçada da casa. Me sentei no meio-fio e fiquei por alí muito tempo.
Tentei pensar em como seria nossa vida daquele dia em diante. Mas não tinha muita noção do iria nos acontecer. Talvez meus irmãos tivessem que trabalhar, talvez minha mãe, talvez eu! O que eu sabia fazer? Em que uma criança de dez anos pode trabalhar? Nada. Não sabia fazer nada e não poderia trabalhar em nada... Decidi que deveria fazer cursos para poder trabalhar. De que adiantavam minhas aulas de piano e natação se não poderia usá-las pra ajudar minha mãe? Pelo contrário, isso só traria mais gastos, apesar de não saber bem o quanto isso era um gasto.
No meu infantil desespero, rezei as orações que sabia. Pedi a Deus que cuidasse da minha família e quando minhas orações se esgotaram, olhei para o céu. Ele já não estava tão escuro e sem estrelas como antes, mas começava a adquirir um tom arroxeado e quase imperceptivelmente foi clareando, passando para o lilás, para o rosa, para o alaranjado. Fiquei encantada com aquele amanhecer. Nunca havia prestado atenção ao nascer do Sol. E ao som dos pássaros que começavam a cantar ouvi uma voz dizendo de dentro de mim "Depois de toda noite escura, o dia sempre nasce". E alí, vendo o Astro-Rei surgir lentamente, tive a certeza de que tudo daria certo.

domingo, 25 de abril de 2010

Bis

Durante a faculdade estudei Florbela Spanca como conteúdo. Agora, quase dez anos depois me dou o prazer de lê-la com a vontade de compartilhar seus poemas.
Queria por um, mas no atual momento e dadas as circunstancias que estou vivendo, porei dois.

O primeiro, Alentejano, parece mais uma pintura do que um soneto, tão forte é a descrição. Quase chego a sentir a brisa quente e ouvir o fado, que provavelmente estão cantando.

"Deu agora meio-dia. O sol é quente
Beijando a urze triste dos onteiros
Nas ravinas dos montes andam ceifeiros
Na faina, alegres, desde o sol nascente.

Cantam as raparigas, brandamente
Brilham os olhos negros, feiticeiros,
E há perfis delicados e trigueiros
Entre as altas espigas d'oiro ardente

A terra prende aos dedos sensuais
A cabeleira loura dos trigais
Sob a benção dulcíssima dos céus.

Há gritos arrastados de cantigas...
E eu sou uma daquelas raparigas...
E tu passas e dizes: - 'Salve-os Deus!' "

O segundo soneto, Versos de Orgulho, é para mim uma luva de pelica aos que tentam me ferir de uma ou outra maneira. Impossível. Agradeço a Deus pelo que passei, de triste e de alegre, pois me fizeram forte e consciente de quem sou e do caminho que tenho que percorrer até chegar aos meus objetivos.

"O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além …
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém !

O mundo ? O que é o mundo, ó meu Amor ?
- O jardim dos meus versos todo em flor…
A seara dos teus beijos, pão bendito…

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços…
- São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito."

viernes, 23 de abril de 2010

Capitis deminutio

Esta semana, conversando com amigos ouvi a expressão "estável" como definição para um relacionamento. Estão namorando? Não. Estão ficando? Não. Então o que é? É estável.
O que seria "estável"?
É estar com alguém por tempo indeterminado sem envolver-se com outros, mas com a noção de que esta situação poderá acabar a qualquer instante, sem causar "danos" emocionais.
Por exemplo: Estou estável com alguém e se por um acaso conhecer outro melhor, posso descartar este sem me sentir culpada por ferir seus sentimentos.
Isso é possível?
Envolver-se com alguém e terminar a relação sem magoá-lo(a) de alguma forma?
E as expectativas? Os anseios? Os desejos de compartilhar os bons e maus momentos?
Vou dividir meus escassos momentos livres com alguém que talvez me deixe na próxima semana ou no dia seguinte?
Não gostei desse lance de "estável". Seguramente não me tornarei adepta dessa nova categoria de relacionamento.

lunes, 15 de marzo de 2010

Cogito ergo sum...

Mentir, pensar

O pior de mentir é criar falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora). O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é a mentira "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a tentar pensar eu sabia muito bem o que eu sabia).
Clarice Lispector.